sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Eu já fiz a minha escolha: o da democracia e da liberdade

 

daisaku ikeda

Quanto mais alta a torre, mais fortes são os ventos que a atingem. Da mesma forma, quanto mais grandiosa a pessoa, mais fortes os ventos da resistência que ela enfrenta.


Enquanto eu aguardava numa sala na Casa Oficial de Hóspedes, em Tóquio, um homem entrou sem ser anunciado. Parecia exausto. A aparência robusta da qual me recordava de encontros anteriores havia desaparecido completamente. Ele estava acompanhado apenas de dois auxiliares e sem o próprio intérprete. Difícil de acreditar, mas se tratava do ex-presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev.


Gorbachev estava no Japão para uma série de reuniões de cúpula com o primeiro-ministro japonês. Aquela era a primeira visita de um chefe de Estado soviético e a realização de um desejo que ele havia compartilhado comigo no ano anterior no Kremlin — o de visitar o Japão na primavera seguinte. Eu estava extremamente feliz por aquela visita ter sido possível. Todo o arquipélago japonês parecia estar aguardando com ansiedade a sua visita.


Ele próprio se mostrava exausto com a programação extremamente apertada das reuniões, as quais pareciam continuar interminavelmente sem qualquer progresso. As negociações não eram o único desafio que ele enfrentava. Seu experimento histórico da perestroika estava sendo criticado dentro da União Soviética e em outros lugares. Mesmo sua esposa, Raisa, estava extenuada pelo esforço e pela fadiga.


Fui até a Casa Oficial de Hóspedes em 18 de abril de 1991, após ter recebido sua mensagem com o desejo de me encontrar. Foi doloroso vê-lo tão cansado.


“Sei quanto tem enfrentado problemas”, disse-lhe, “mas quanto mais desesperadora a situação, mais próxima está sua solução. Eu o estimo, Sr. Presidente, pois sei bem que suas ações estão baseadas nos melhores interesses de toda a humanidade”.


Ao final do nosso encontro ele já se mostrava mais animado. Agradeceu-me, cumprimentou minha intérprete e partiu para mais uma série de reuniões. Comentei com minha intérprete que ele não havia estendido a mão em cumprimento. Ela riu e disse: “Foi porque, durante toda a reunião, o senhor conversou com ele segurando seus braços, praticamente sacudindo-o!”.


Quatro meses mais tarde, em agosto de 1991, Gorbachev foi condenado à prisão domiciliar durante uma tentativa de golpe de Estado feita por comunistas. Ele não aparecia publicamente, o que deu vazão a rumores de que havia sido assassinado. Até hoje não me esqueço da sensação de alívio ao ver pela televisão a cobertura do seu retorno a salvo.


Certa vez, ele me disse estar ciente da história sangrenta das lutas pelo poder na Rússia. Como consequência, tanto ele quanto sua família estavam cientes do perigo que corriam.


Meu alívio foi breve: no final daquele ano [1991] a União Soviética entrou em colapso e fiquei mais preocupado com ele do que antes. Gorbachev renunciou. As correntes da história avançaram. Após nosso primeiro encontro, tive um estranho pressentimento de que aquele seria seu destino, uma vez que ele era alguém confiado pelas pessoas. Sabia também que aquele era seu maior idealismo — sua fé na humanidade — que o motivava a se lançar ao movimento pela perestroika em primeiro lugar.


O escritor Chingiz Aitmatov falou certa ocasião a respeito de uma conversa que tivera com Gorbachev, na qual ele havia citado uma fábula sobre dois caminhos:


“Um profeta”, disse Aitmatov, “estava certa vez conversando com um rei. ‘Sua Majestade’, disse ele, o senhor está diante de dois caminhos. Um deles é a consolidação do trono por meio de leis opressivas, na forma tradicional. Se escolher esse caminho, sua permanência no poder estará garantida. O outro caminho é o da completa liberdade e conduzirá as pessoas à felicidade. Se escolher esse caminho, entretanto, enfrentará uma vida de intensas dificuldades, pois as pessoas usarão sua nova liberdade para criticá-lo. Abusos e traições encherão a terra e o senhor será alvo de ridicularização. Depende do senhor escolher um entre esses dois caminhos”.


Após ouvir atentamente as palavras de Aitmatov, Gorbachev respondeu calmamente: “Eu já fiz a minha escolha: o da democracia e da liberdade. Mesmo que ninguém entenda o que estou tentando fazer, é o único caminho a seguir”.


Não podemos esquecer o poder virtualmente ilimitado que Gorbachev desfrutava ao ser indicado para secretário-geral do Partido Comunista. Esse poder poderia ter-lhe garantido uma posição inabalável. Entretanto, ele preferiu renunciar a isso quando iniciou o processo de mudança e de reforma, o qual sabia que poderia minar sua posição pessoal. Nesse sentido, o processo da reforma da União Soviética teve seu início com a perestroika de uma única pessoa: o mais importante líder da nação. Quanto o mundo deve à corajosa decisão desse homem!


Logo após sua renúncia como presidente, expressei-lhe minha certeza de que, para ele, como indivíduo, era apenas o começo, e que seu trabalho mais importante estava por vir.


Gorbachev e eu nos encontramos novamente em 1992 e em 1993, ambas as ocasiões em abril, quando no Japão o clima é ameno e as cerejeiras estão cobertas de flores. Lembro-me dele em nosso primeiro encontro dizendo que tinha uma afinidade especial pela primavera, a estação da renovação.


Para mim, era um prazer vê-lo livre do fardo e de toda a ansiedade da posição política que ocupava. Mesmo assim muitos dos seus opositores, que ansiavam encontrá-lo quando era presidente, saudavam o cidadão Gorbachev com desdém. Essas pessoas eram incapazes de apreciar o espírito que dera vida à perestroika, a preocupação por toda a humanidade que motivara Gorbachev. Em 1993, Mikhail e Raisa Gorbachev visitaram a Universidade Soka. Gorbachev falou durante aproximadamente uma hora diante da assembleia de estudantes e professores. “No Ocidente”, disse ele, “é comum a ideia de que a perestroika tratava-se de uma declaração de derrota dos soviéticos na Guerra Fria. Na verdade, foi justamente o contrário. O objetivo da perestroika”, explicou ele, “era produzir uma renascença espiritual nas pessoas, para rejeitar a falsidade, o cinismo e as posturas dúbias. Assim, a perestroika representa a vitória espiritual e moral dos cidadãos da União Soviética”.


Eu estava muito feliz por vê-lo falar com saúde e energia renovada. Fiquei também impressionado quando clamou, no mesmo discurso, por uma nova civilização focada nos seres humanos e nos interesses humanísticos, e não simplesmente voltada a avanços tecnológicos. Lembrei de vinte anos antes, em 1974, quando visitei pela primeira vez a União Soviética. O primeiro-ministro Aleksey Kosygin perguntou no que eu acreditava. Imediatamente respondi: “Na paz e na cultura, mas acima de tudo, na humanidade”. No início dos anos 1970, simplesmente visitar a União Soviética ou conhecer o seu povo era motivo de crítica. Entretanto, eu tinha certeza de que uma relação aberta e franca entre a União Soviética e outros países — fosse o Japão, a China ou os Estados Unidos — poderia ser conquistada por meio de diálogos baseados em princípios humanísticos, priorizando a felicidade das pessoas. Embora houvesse riscos, era necessário criar um caminho. Acredito que a paz só possa ser alcançada por meio de um esforço incessante. E é por isso que clamo constantemente ser o diálogo o caminho mais seguro para a paz.


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