segunda-feira, 4 de outubro de 2021

“Lutar é minha vida!”

 

daisaku ikeda

Há algo de muito especial no sorriso de Nelson Mandela. É um sorriso honesto e puro, cheio de bondade e serenidade, incorpora as convicções e a força do caráter de um homem que conduziu seu povo à liberdade. É um sorriso tão puro e genuíno quanto o ouro, e ele brilha como alguém que foi severamente forjado no crisol do sofrimento mais profundo, onde se refinam todas as impurezas.

Ele irradiava confiança quando o saudei em Tóquio, numa tarde de julho de 1995. Era o nosso segundo encontro, pouco após haver sido eleito presidente da África do Sul.


Mandela comentou: “As prisões da África do Sul pretendiam nos enfraquecer, de forma que jamais tivéssemos novamente força e coragem para perseguirmos nossos ideais.”


Os prisioneiros eram acordados antes do amanhecer para uma longa jornada de trabalho forçado. Durante treze anos, Mandela foi conduzido em correntes para uma mina de pedra calcária e forçado a extrair cal de um despenhadeiro íngreme sob um sol escaldante.

Mesmo sob essas condições terríveis, Mandela conseguiu estudar e incentivar os outros prisioneiros a partilharem seu conhecimento uns com os outros e debaterem suas ideias. Palestras eram realizadas em segredo e a prisão veio a ser conhecida como “Universidade Mandela”. Ele jamais diminuiu seus esforços para transformar as visões errôneas e criar aliados entre os que o rodeavam. Posteriormente, seu espírito indomável conquistou o respeito até mesmo dos guardas da prisão.


De longe, o tormento mais cruel que tinha de suportar era sua incapacidade de auxiliar seus familiares ou protegê-los das incessantes perseguições das autoridades. Foi na prisão que soube da morte de sua mãe. Foi na prisão que soube que seu filho havia morrido “acidentalmente” em circunstâncias muito suspeitas. Foi nessa mesma cela que soube das perseguições à sua esposa. E foi também no cárcere que soube que sua casa havia sido incendiada e que seus companheiros do movimento pelos direitos civis dos negros estavam sendo mortos um após o outro. Não havia nada a fazer a não ser resistir.


Em 1978, dezesseis anos depois de sua prisão, finalmente lhe foi concedido o direito de se encontrar com sua filha Zenani. Ela havia se casado com um príncipe da Suazilândia, conquistando assim o privilégio diplomático de um encontro pessoal, sem muros nem barreiras de vidro separando pai e filha.


Zenani levara sua filha recém-nascida junto com ela. Deixou o bebê com seu marido e correu para os braços de seu pai, sentindo uma descarga elétrica de emoção quando ela o abraçou.


O presidente Mandela segurou sua neta durante toda a visita. Ele escreveu: “Segurar um bebê recém-nascido, tão vulnerável e suave em minhas mãos ásperas, que por muito tempo seguravam apenas picaretas e pás, foi uma alegria indescritível. Não creio que nenhum homem tenha sentido maior felicidade por segurar um bebê do que eu senti naquele dia.”


Zenani pediu a seu pai que escolhesse um nome para o bebê. Ele a chamou de Zaziwe, que significa “esperança”. Quando olhou sua neta, escreveu posteriormente, pensou no futuro, quando ela já estaria crescida e o apartheid seria uma lembrança distante. Ele pensou na chegada de uma nova era, na geração de sua neta desfrutando o sol da liberdade, caminhando orgulhosa e destemidamente pelas ruas. Ele pensou em uma era em que seus país não fosse governado por brancos ou negros, mas que todas as pessoas pudessem viver juntas em harmonia e igualdade. Foi pensando em tudo isso que ele escolheu o nome Esperança para sua neta.


Quando o presidente Mandela e eu nos encontramos pela primeira vez, em 1990, sugeri a organização de uma série de programas para informar o público japonês sobre a realidade do apartheid e para promover a educação na África do Sul. O presidente Mandela aceitou minha proposta com grande alegria. Seu secretário, Ismail Meer, disse que essa oferta de intercâmbio cultural foi um reconhecimento bem-vindo dos africanos como seres humanos. Isso é o que lhes foi negado na África do Sul, onde eles eram simplesmente classificados como “negros”.


A tendência de rotular as pessoas não existe apenas na África do Sul. Atitudes preconceituosas são a raiz dos abusos dos direitos humanos em todos os lugares. Considerando as pessoas em categorias, não conseguimos reconhecê-las como indivíduos, como seres humanos; já não conseguimos mais nos colocar no lugar delas. Elas estão à nossa frente mas não as vemos.


Durante a Guerra Fria, a África foi palco das guerras de procuração entre os blocos ocidental e oriental, o que fez enriquecer os negociantes de armas das grandes potências. E o que o resto do mundo disse do povo africano que tanto suportou? Que a África era um fracasso. Uma arrogância indescritível!


“Lutar é minha vida!” — fiel a essa convicção, em 1962, Mandela transformou até mesmo o tribunal onde estava sendo julgado em um campo de batalha para articular corajosamente seus ideais e em eloquentes apelos pela justiça. Diante do juiz, ele sugeriu que o direito ao voto fosse estendido a todos os sul-africanos. Mandela declarou: “Não me considero nem legalmente nem moralmente obrigado a obedecer ordens feitas por um parlamento no qual eu não tenho representação”.

De dentro de sua cela, Mandela continuou a inspirar o povo da África do Sul. Embora ele não conseguisse se comunicar com as pessoas, sua própria existência já era uma fonte de esperança.

O mundo registrou seu desgosto pelo apartheid e seu apoio por aqueles que resistiam a esse sistema econômico por meio de sanções econômicas e boicotes culturais e esportivos. Sentindo essa pressão, o governo da África do Sul ofereceu libertar Mandela em várias ocasiões. Ele recusava consistentemente essas ofertas, o que comprometeria a integridade do movimento antiapartheid. Ele recusava considerar a sua própria liberdade antes que todo o país a tivesse alcançado. Aos seus olhos, toda a África do Sul era uma prisão.


Finalmente, o dia de sua libertação chegou. Naquele dia, 11 de fevereiro de 1990, Mandela discursou na Cidade do Cabo:

“Estou aqui diante de vocês não como um profeta, mas como um humilde servidor de vocês, o povo. O incansável e heroico sacrifício de vocês tornou possível eu estar aqui hoje. Portanto, deposito os anos restantes de minha vida em suas mãos.”

Mandela sonha com uma terra governada não por negros ou brancos, mas por uma “nação arco-íris”, na qual todas as pessoas desfrutem igual tratamento. Certa vez ele disse: “É um ideal pelo qual espero viver e alcançar. Mas, se necessário, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer”.


As primeiras eleições não raciais da África do Sul, abertas a todos os cidadãos, foram realizadas em abril de 1994. Enquanto Nelson Mandela caminhava até a urna eleitoral, as faces de todos aqueles que haviam morrido na jornada até aquele momento surgiram em sua mente. Homens, mulheres, crianças, eles haviam dado a vida para que ele e seus companheiros sul-africanos pudessem estar lá naquele dia.


Ninguém pode nos ensinar melhor esse profundo significado de liberdade do que esse homem que passou metade de sua vida adulta aprisionado. A essência da liberdade encontra-se numa convicção resoluta. Somente aqueles que vivem fiéis às suas convicções, cuja fé interior os possibilita se elevarem acima dos grilhões de qualquer situação, são realmente livres. Como disse o presidente Mandela: “Ser livre não é somente libertar-se das correntes, mas viver de uma forma que respeite e fortaleça a liberdade dos outros”.


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